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Ensaio: Microfísica do Poder e a Cracolândia

A cracolândia e o controle dos corpos
A dependência química é um transtorno mental, uma das doenças psiquiátricas mais recorrentes da atualidade. Ao falar em dependência química, é comum pensar em drogas ilícitas, mas o tabaco e o álcool - drogas lícitas - também geram dependentes químicos tão perigosos para si mesmos e para a sociedade quanto dependentes de drogas ilícitas. Então, por que humanizamos a dependência de alguns e desumanizamos a dependência de outros?
Para responder essa questão, o filósofo francês Michel Foucault versa em seus estudos acerca do controle da sociedade sobre os indivíduos. Controle que não começa pela ideologia, mas no corpo e pelo corpo. Assim, devemos entender a vida biológica como interesse político - biopolítica -, a conversão do corpo do indivíduo em alvo de controle do Estado e a medicina como produto dessa vigilância e normalização. Em outras palavras, nossos corpos, a princípio biológicos, também estão permeados, atravessados e, acima de tudo, controlados pelo Estado.
Isto posto, ainda que os efeitos biológicos da ingestão de bebidas alcoólicas possam oferecer riscos à sociedade quando pensamos em comportamentos agressivos e consequências psicológicas da dependência, ainda assim, o álcool não é encarado pelas instituições como um problema social e político da mesma maneira que o uso do crack.
Trazendo essa perspectiva de análise ao caso do possível fim da cracolândia, em uma megaoperação policial dispersou, com arsenal de guerra, dependentes químicos e traficantes da cracolândia em maio de 2017, na cidade de São Paulo, e determinou a internação compulsória dos dependentes químicos que lá estavam, podemos então observar que tais ações do Estado encaram o corpo do indivíduo como inútil à sociedade, o indivíduo não só é marginalizado, mas passa a ser um produto inútil, especialmente pela sua incapacidade de ser um corpo da força de trabalho, o que justifica qualquer medida do Estado, mesmo que essa esteja dentro da narrativa da medicina social - em que a saúde e a doença na população são determinadas por uma estrutura social factual.
Na cracolândia, a dominação dos corpos já ocorreu de forma tão forte, e são diversas as histórias dos indivíduos que habitam esse espaço, que as ações repressoras e violentas do Estado são justificadas socialmente pela narrativa do descontrole do sujeito sobre o próprio corpo. Assim, a dominação que começou no corpo, nas mazelas sociais do vício, encontra seu desfecho pelo corpo, na repressão violenta:
 
“Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.” (FOUCAULT, 1985, p. 8).
 
Dessa maneira, como aborda Foucault, o controle não tem início na repressão por si, mas nos desdobramentos sociais que levam o indivíduo ao uso da droga e as estruturas que trabalham na manutenção do vício. Essa produção de vícios é, portanto, um dos primeiros efeitos do poder. E o indivíduo age como transmissor desse poder, delegando o poder do próprio corpo ao desejo e, posteriormente, culminando no poder repressivo do Estado.
 
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 5 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
Ensaio: Microfísica do Poder e a Cracolândia
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